Iniciativa louvável do
rapper MV Bill, de Celso Athayde e da organização Central Única de Favela, o
documentário “Falcão: meninos do tráfico”, lançado em 2006, apresenta a rotina
de crianças e jovens brasileiros no que se refere às suas funções no
empacotamento da maconha e da cocaína, na venda das mesmas e na vigília noturna nas
diversas comunidades do Brasil. Segundo o próprio rapper, as semelhanças entre
as crianças e jovens envolvidos com o tráfico estaria no fato de serem negros,
de pertencerem a famílias desestruturadas e de morarem em favelas.
De acordo com pesquisas
publicadas no “Mapa da Violência”[1],
em 2003, morreram 71,7% mais negros do que brancos, no Brasil, por arma de
fogo. Em 2014, esse percentual alcança a marca de 158,9%. Há que se estudar
caso a caso, Estado por Estado, pois essa porcentagem pode significar algo mais
do que a herança da escravatura e práticas racistas. De todo modo, denotam o
aumento do índice de violência e da morte entre negros no país. Dentre esses
homicídios, a mortalidade é maior entre jovens do sexo masculino, visto que,
desde os 13 anos, as mortes crescem de forma contínua até alcançarem o pico nos
20 anos de idade.
Mesmo com “Falcão”
tendo escancarado as condições desumanas, nas quais essas crianças e jovens
vivem, elas continuam invisíveis para o Estado. Ainda assim, considera-se a
possibilidade de uma comoção da sociedade brasileira e do mundo, mediante a
fruição da obra. Apesar disso, como pode comprovar os dados acima, não há
transformações relevantes no cuidado e na educação dessas crianças.
Em “Alma no olho” (1976), Zózimo Bulbul dirige
a si próprio em uma linguagem experimental com o evidente propósito de tratar
da identidade negra. Nas primeiras cenas, há um enquadramento em seu sorriso, rosto,
orelhas, ombros, mãos, tórax, perna, pés, entre outras partes, o que destaca o
corpo negro e suas particularidades em contraponto ao “fundo infinito branco”. Não
há uma fala sequer e o gestual apresentado retrata a trajetória do negro, desde a sua vida na África até
a reivindicação da sua liberdade em território brasileiro.
Em um primeiro momento, esse corpo embalado pela música de John Coltrane expõe beleza e contentamento. Mostra-se extasiado, livre, sendo que seus adornos e indumentária rememoram a cultura africana. Entretanto, tal estado dará lugar repentinamente à amargura, à angústia, ao desespero, quando ele é trancafiado em grilhões. A escravidão dos africanos (as) de modo atroz rouba-lhes a realidade, a verdade, a liberdade, a moral, que desfrutavam na terra natal, para a imposição da sujeição e obediência. A escravidão ocorre, evidentemente, por necessidades econômicas encobertas pelos supostos deveres civilizatórios.
O que Zózimo pretende nesse curta é justamente uma exposição cuidadosa do corpo negro com a finalidade de uma aceitação do mesmo e da sua história. A performance determina que mesmo após o fim da escravidão, o negro permanece, de algum modo, escravizado. Vê-se notoriamente traços de vivacidade e contentamento, quando ele ainda está em sua terra natal e o desamparo, a melancolia nos períodos em se que encontra escravizado. Somente no último instante as correntes são quebradas, o que indica que a consciência acerca da sua identidade provoca uma ação de resistência, que refreia a opressão. Agora, o semblante é de revolta.
Barravento (1962) de Glauber Rocha representa as tradições e costumes de um grupo de pescadores e mulheres da aldeia de Buraquinho, na Bahia. Já no letreiro que antecede o filme, o diretor anuncia que a aldeia é povoada por descendentes de escravos. E logo de início, há a cena dos pescadores, que ao puxar a rede de forma ordenada pelo som do atabaque, compõem um bailado sincronizado. Essa ginga rememora os nossos ancestrais africanos e a sua cultura, que dança.
Práticas relacionadas às crenças nos orixás, o descanso e o divertimento no samba de roda, além de o fato da discórdia se desdobrar no enfrentamento dos capoeiras compõem aspectos objetivos da personalidade coletiva da população de Buraquinho. Ademais, nos créditos iniciais e primeiras cenas, há um encantamento oriundo da trilha sonora, que mediante os tambores dos ogans , cantos e coros reverenciando aos orixás, o toque do berimbau nas canções da capoeira e os sambas de roda, caracterizam o referido grupo.
No tocante aos aspectos subjetivos, o personagem Firmino Bispo dos Santos, de “Barravento”, compreende que a população de Buraquinho não usufrui da liberdade que lhe é de direito e se mantem, de certa forma, “escravizada”. Firmino tanto no seu discurso quanto nas suas ações, desde o seu retorno à aldeia, pretende transformar o imaginário cultivado pela população, que faz com que o grupo se mantenha em regime de exploração. Os acordos abusivos provém do fato, que a rede, com a qual os pescadores puxam o peixe “xaréu”, não lhes pertence. Assim, eles pagam caro por isso, pois na partilha, o proprietário da rede fica com parte expressiva dos peixes. Conforme descrito na cena, ficaria um xaréu para cada cem pescadores, enquanto o Mestre ficaria com quatro peixes e o dono da rede com quatrocentos. E isso é acordado com o Mestre, morador da aldeia, quem os pescadores respeitam e acabam por obedecer. Dessa forma, o Mestre permite a exploração de si mesmo e a dos pescadores, além de também explorá-los, visto que ele se encontra em vantagem na partilha dos peixes.
Contudo, Firmino não se deixaria “escravizar”, e desde que voltou, afronta as determinações do Mestre, e, consequentemente a Aruã, filho adotivo e fiel seguidor do Mestre. O filme se inicia com o retorno de Firmino à aldeia, pois era considerado um “elemento subversivo” pela polícia. Insatisfeito com a vida na aldeia, Firmino foi trabalhar na cidade, descarregando navio e, por motivos que não estão definidos, passaria a ser perseguido pela polícia. Em analogia com a alegoria da caverna de Platão, pode-se dizer que Firmino, ao sair da aldeia em direção à cidade, teria se libertado dos grilhões que o acorrentavam, privando-o da sua liberdade e de compreender a realidade: a verdade das coisas. Ele teria, então, tido força e coragem suficientes para olhar e seguir em direção ao sol até sair da caverna, assim, deixaria de perceber a si mesmo e o mundo somente sob a perspectiva subjetiva, restrita e mística. E passaria a enxergar a submissão e a passividade dos pescadores diante da exploração causada pelos os acordos abusivos com o proprietário da rede.
Os outros moradores da aldeia, por outro lado, se mantiveram acorrentados àquela perspectiva de vida ao permitir a exploração já mencionada, ou seja, eles não conheciam outra forma de viver e tampouco procuravam por isso. E se a angústia apertasse, eles se entretinham no samba de roda ou recorriam ao terreiro da mãe de santo. Nessa direção, vale acrescentar que os hábitos dos “prisioneiros” de Buraquinho se justificam também na sua crença religiosa.
A devoção à Iemanjá se dava em forma de gratidão e temor, pois acreditavam que a deusa poderia abençoá-los ao possibilitar a retirada dos peixes e puni-los, deixando que a fome tomasse a aldeia. No imaginário de seus devotos, Iemanjá teria ciúmes dos belos pescadores e não permitiria que os mesmos se casassem. Isso era o que justificava a solidão do Mestre e a crença de que Aruã não poderia se relacionar de forma amorosa e sexual com as mulheres, posto que era protegido por Iemanjá e à divindade das águas do mar ele devia ser fiel, para que a pesca continuasse farta.
No contexto de Barravento, Firmino questiona as crenças, os valores morais, enfim, o comportamento dos moradores da aldeia ao pretender subverter o modo de pensar e agir dos mesmos. Portanto, após o deslumbramento com a realidade, ele retorna a fim de incitar a saída daquela condição de exploração. Contudo, ele mesmo admitiria a dificuldade de tal feito, já que os pescadores eram, na sua maioria, analfabetos. Assim, com exceção de Aruã, ninguém teria suficiente coragem e discernimento para lhe dar alguma razão. Nesse momento, Firmino representa a figura do filósofo que, pela própria consciência, liberta-se da exploração sofrida pelos pescadores e do misticismo religioso, que justificaria o hábito em Buraquinho. O Mestre, por sua vez, comporta-se como um prisioneiro da caverna, visto que não concebe outra realidade para si, para os pescadores e faz com que todos permaneçam à sombra da realidade.
Distintamente do desfecho da alegoria da caverna de Platão, Firmino consegue que Aruã perceba o condicionamento provocado nos homens pela crença fervorosa, fazendo com que eles não tenham atitude para enfrentar a injustiça e a desigualdade presentes no cotidiano da aldeia. Aruã corajosamente rompe com a tradição e sai da aldeia a fim de assegurar um futuro próspero para os seus. Ele compreende que não basta acatar as decisões do Mestre, já que esse último desrespeita a si mesmo e aos seus concidadãos por sustentar a sujeição indigna de homens livres.
A presente pesquisa investiga a representação da identidade negra no cinema brasileiro, com o propósito de discutir a educação/formação dos sentimentos do observador, na transformação de um imaginário racista para um não racista, mediante a fruição de certas obras. Para tanto, mobiliza-se conceitos da Estética de Immanuel Kant, Susanne Langer, Vilém Flusser e Herbert Marcuse, que passam a operar na crítica ao Cinema Negro. Pretende-se, portanto, elencar uma filmografia que compreenda, em alguma medida, aspectos da ancestralidade africana, da cultura afrodescendente, das condições nas quais se dá a escravidão, a abolição da escravatura e o desenrolar da experiência do negro na sociedade brasileira contemporânea. Sabe-se que o estereótipo do negro veiculado na mídia e no cinema favorecem o cultivo do preconceito no imaginário da sociedade. Segundo Munanga, tanto a definição de identidade negra quanto a de negritude referem-se evidentemente à ordem biológica, mas também à ocorrência desumana das tentativas de aniquilar a cultura africana ou mesmo no fato de considerá-las inexistentes. A conscientização da “negritude” provém da aceitação dos atributos físicos e visa atingir as esferas mentais e morais. Significa, portanto, uma reconstrução positiva da identidade negra, não mais compreendida como um objeto ou mesmo passiva.